on quinta-feira, 24 de julho de 2014
Há alguns dias atrás mostraram-me um vídeo chamado "Break Free", que retrata a transição de uma pessoa de uma aparência feminina para masculina. O video está engraçado, mas lá para o meio mostra uma cena durante a qual a personagem começa a enfaixar o peito com ligaduras, com o objetivo de criar uma ilusão de ter um peito liso, masculino.



Esta é uma imagem que eu vejo demasiadas vezes para retratar homens transexuais. Quase todas as aparências de trans masculinidade trazem consigo uma cena onde a pessoa pega em ligaduras e se mete a enfaixar o peito, como se tal fosse o único método para criar um peito liso.



Este tipo de imagem é frequente porque, infelizmente, este ritual das ligaduras ainda faz parte da vida de um homem transexual. Se eu fosse contar a minha história em pormenor, as ligaduras também apareciam por lá. É bastante negativo que assim seja, porque usar ligaduras com este propósito é muito pouco saudável e pode causar problemas a curto, médio e/ou longo prazo.

Eu costumava usar ligaduras, e posso confirmar que é péssimo. Alguns dos problemas que encontrava incluíam:
- Dificuldade em respirar: as ligaduras não têm muita elasticidade, o que significa que não acompanham os movimentos de expansão da caixa torácica durante a respiração;
- Dificuldade em apertar corretamente as ligaduras: apesar de as ter usado durante algum tempo, nunca consegui atinar com o método certo para as apertar. Se apertava pouco elas caíam, se apertava demasiado passava o dia com imensa dificuldade em respirar e num desconforto enorme; pior ainda quando o tinha de fazer às escondidas, a meio do dia, num WC público;
- por falar em ligaduras a cair, era bastante comum as ligaduras saírem do sítio e desfazerem-se durante o dia (principalmente em dias mais movimentados, quando tinha de correr para apanhar um autocarro ou quando tinha de fazer algum tipo de atividade mais física);
- não são assim tão baratas a longo prazo: as ligaduras que eu usava custavam cerca de €2.5, o que parece pouco, mas quando tinha de comprar umas novas a cada duas semanas, acabava por me ficar caro caso as usasse durante um ano (2.5*2*12 = 60 euros/ano);
- paranóia constante: quando usava ligaduras estava constantemente a verificar se ainda estavam no sítio, se nenhum dos ganchos de tinha soltado ou se não se notavam debaixo da camisola;
- irritação da pele: principalmente de lado, abaixo das axilas, à mistura com suor, o material das ligaduras não era muito amigável para a pele.

Além disto, as ligaduras podem causar hematomas ou, em casos extremos, costelas partidas. Portanto, a lição a tirar daqui é: não usar ligaduras para enfaixar o peito.

Felizmente, existem alternativas. Existem vários métodos que também são eficazes para criar a ilusão de um peito liso. Não existe um único método que funcione bem com toda a gente; dependendo do tamanho do peito e da estrutura corporal de uma pessoa, certos métodos podem resultar melhor do que outros. 

Eu já experimentei vários métodos diferentes e acabei por me render aos chamados "binders" (não consigo encontrar uma tradução da palavra binder para o português). Binders são uma espécie de camisola de compressão, inicialmente foram concebidos para esconder as mamas de homens cissexuais que sofrem de ginecomastia (uma condição que leva ao crescimento de mamas em homens cis), mas rapidamente a população trans começou a usa-los para o mesmo fim. Normalmente, só se encontram binders à venda em lojas especializadas. Algumas marcas bastante populares entre homens trans são a Underworks (EUA), a T-Kingdom (Taiwan) e a Mansculpture (EUA). A única loja que eu conheço baseada na Europa é a Danae (Holanda), mas não conheço bem os binders dessa marca. 
Os binders costumam ser o método por excelência para criar um peito liso. Existem várias marcas, vários modelos e vários tamanhos para escolha; o único senão costuma ser o preço. 

Parecidos com os binders são as camisolas de compressão usadas por atletas de várias modalidades. Estas podem encontrar-se em mais locais e a preços mais acessíveis, mas normalmente não têm tanta capacidade de compressão como um binder. 

Além destes produtos, existem alguns métodos mais "caseiros".
Um soutien de desporto pode ajudar um bocado, havendo até quem use dois ao mesmo tempo para dar alguma compressão extra. No entanto, um soutien, mesmo de desporto, não é concebido para alisar por completo o peito. 

Também já vi pessoas a descrever métodos que usam faixas de neopreno, calções de compressão modificados ou outros métodos caseiros. E, se tudo o resto falhar, há sempre a estratégia de usar várias camadas de roupa ou roupa larga para disfarçar um bocado (óbvio que isto resulta melhor no Inverno do que no Verão).

Independentemente do método usado, é importante manter algumas coisas em mente. Por vezes, usar um destes métodos acaba por ser um jogo de forças entre o desconforto físico de comprimir o peito versus o desconforto psicológico (e também físico) de ter de lidar com a disforia. No entanto, caso isto provoque dor durante um longo período de tempo, considerem mudar o método ou mudar a forma como lidam com a compressão. Uma dor aguda costuma ser uma deixa para retirarem de imediato o que quer que seja que estejam a usar para comprimir o peito. Nós queremos aliviar a disforia, mas não compensa o esforço se acabarmos por partir uma costela ou por arranjar algum problema respiratório à custa disso.

É preciso também ter em atenção a quantidade de tempo seguido durante o qual temos o peito comprimido. Normalmente, aconselha-se a não usar qualquer um destes métodos por mais de 8 horas seguidas. Mesmo que estejamos confortáveis, o nosso corpo precisa de pausas para recuperar da compressão. Além disto, é importante saber que, a longo prazo (se usarmos estes métodos durante anos) pode ocorrer uma diminuição da elasticidade da pele nas zonas comprimidas, o que pode comprometer os resultados de uma eventual mastectomia. 

Para quem sua muito ou tem a pele particularmente sensível, pode ser uma boa ideia usar algum produto que diminua a fricção ou uma t-shirt por baixo do binder/camisola de compressão/soutiens múltiplos/etc. Nunca (nunca!) usem fita cola, mesmo que a vossa pele não seja sensível; a fita cola pode causar danos na pele, para além do desconforto enorme que causa (eu nunca hei de perceber como é que há gente que usa este método, mesmo que seja apenas durante performances de drag). 

O ponto fulcral costuma ser usar o bom senso. Se dói demasiado, parem e mudem o método. Se está demasiado desconfortável, ajustem ou façam uma pausa. Não testem os limites do vosso corpo. Nós estamos a tentar ficar confortáveis dentro da nossa própria pele, portanto seria altamente contra produtivo estar a induzir lesões que poderiam ser evitadas com relativa facilidade. 

Eu estou a planear fazer um post mais aprofundado sobre métodos para alisar o peito. Caso tenham alguma experiência, dica ou método que queiram partilhar, deixem um comentário aqui. 

on quarta-feira, 16 de julho de 2014
Wake me up when September July ends... ou a meio de Julho, já serve. A faculdade não me tem deixado escrever nada, entre exames, trabalhos e relatórios, o tempo era pouco e a paciência ainda menor. Mas entretanto continuei a acumular tópicos que gostava de abordar aqui e, agora que já me livrei da faculdade (até Setembro, vá), já consigo voltar a escrever alguma coisa de jeito. 

Deixem-me falar um bocado sobre "disforia". Muitas vezes oiço falar das pessoas transexuais como "pessoas que sofrem de disforia de género"; "disforia de género" é também o nome que dão às pessoas transexuais na versão mais recente do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM - um manual de diagnóstico elaborado pela American Psychiatric Association (APA)), vindo substituir o que antes chamavam de "Gender Identity Disorder" (Perturbação de Identidade de Género). 

Em termos básicos, disforia de género é um desconforto e/ou descontentamento com o género que nos foi atribuído à nascença. É aquilo a que normalmente se refere quando dizemos que as pessoas transexuais "sentem-se mal" com o seu corpo ou com o seu papel na sociedade. Esse "mal estar" é a base da disforia. O conceito é bastante simples, mas mesmo assim ainda vejo por aí muita desinformação a ser espalhada em relação a este tópico.

A ideia (errada) mais comum que costumo encontrar é a ideia de que disforia de género significa que uma pessoa odeia o seu corpo. Enquanto que é verdade que a disforia pode levar a sentimentos de ódio em relação à nossa própria pessoa, esses sentimentos não são o que define disforia, nem estão sempre presentes nas pessoas disfóricas. A disforia pode manifestar-se de diversas formas: pode ser um desconforto físico ou psicológico, pode ser uma sensação de desconexão com o nosso corpo (sentir que o nosso corpo não nos pertence, não nos identificarmos com a nossa imagem num espelho, uma sensação um bocado abstrata de "o meu corpo não devia ser bem assim"), pode manifestar-se como uma depressão, ansiedade, angústia, tristeza ou descontentamento geral com as características sexuais primárias e/ou secundárias do nosso corpo. Tudo isto pode levar, eventualmente, a sentimentos auto depreciativos, ao tal "ódio" ao nosso próprio corpo; mas nem sempre tal acontece, e acho errado estar a espalhar esta ideia uma vez que muita gente não se identifica com ela.

Eu já cheguei a ouvir pessoas a descrever imensos sintomas de disforia, mas a chegar ao fim e dizer "mas eu não tenho disforia, não odeio o meu corpo" - eu próprio andei anos a pensar desta forma, o que foi péssimo pois foi algo que me permitiu continuar em negação em relação à minha própria identidade como pessoa transexual. "Como não tenho um ódio de morte do meu corpo, então não devo ser mesmo trans", era disto que eu me tentava convencer, durante anos, até chegar à conclusão que realmente não precisava de ter um ódio extremo ao meu corpo para encaixar dentro dos sintomas de disforia de género e para beneficiar de uma transição.

A disforia acaba por ser o que motiva as pessoas transexuais a iniciar a transição - aliás, a transição pode até ser definida como um conjunto de modificações que uma pessoa faz para aliviar a disforia de género. É importante referir que, porque nem toda a gente experiencia a disforia da mesma forma nem com o mesmo grau, então logicamente se conclui que nem toda a gente segue a mesma linha durante a sua transição. 

De vez em quando deparo-me com pessoas que rejeitam por completo a noção de "disforia de género" porque sentem que é um termo usado para patologizar as pessoas transexuais. "Disfórica é a sociedade", "disfóricos são os médicos", são coisas que já vi por aí e que pretendem transmitir a ideia de que a sociedade é que está errada em relação à noção de transexualidade, às pessoas transexuais e às questões de identidade de género no geral. Pessoalmente, estes statements incomodam-me um bocado, apesar de entender de onde surgem. É um facto que a sociedade atual não vê com bons olhos as pessoas transexuais (nem qualquer pessoa que fuja um bocado das normas de género) e que é preciso ainda imenso trabalho para que sejamos totalmente aceites e vistos como seres humanos completos e merecedores de dignidade. É também verdade que ainda existem inúmeros profissionais de saúde que teimam em rotular-nos de doentes mentais. Mas pegar nisso e invalidar todo o conceito de "disforia de género", como se fosse algo que existisse apenas devido a fatores externos à pessoa transexual, parece-me um abuso.

Dizer que "disfórica é a sociedade" incomoda-me porque parece estar a implicar que a minha experiência, a minha relação com o meu género, o meu corpo e a minha identidade, tudo isso é inválido porque, pelos vistos, eu não tenho disforia, a sociedade é que tem. Como se, se eu vivesse num contexto social diferente (por exemplo, numa sociedade hipotética onde o conceito de género não existisse), deixasse subitamente de ter disforia. Como se, se eu conseguisse abstrair-me dos conceitos de género que a sociedade me impõe, deixaria de ter disforia e não teria de me dar ao trabalho de fazer a transição. Tudo isto começa a soar perigosamente próximo dos argumentos transfóbicos que dizem que as pessoas transexuais deveriam apenas aprender a aceitar o seu corpo e que, portanto, a transição é inútil. E isto não sou eu a pensar demais numa expressão supostamente inócua, já não é a primeira vez que vejo este tipo de ideia associado a outras ideias como "um homem pode ter uma vagina e mamas" (eu não discordo desta ideia, atenção) e até já vi pessoas a pegar nisto e a fazer umas acrobacias argumentativas estranhas e chegar à conclusão que a disforia é, no fundo, uma forma de cissexismo e transfobia internalizada. Porque, ao querer aproximar o meu corpo de um corpo "normativamente masculino", estou na realidade a reforçar a ideia sexista de que "um homem tem de ser assim e uma mulher tem de ser assado" (eu gostava mesmo de estar a inventar isto, mas não estou). 

Eu sou todo a favor de desconstruir o binarismo de género que a sociedade força em cima de nós, mas gostava que o fizessem de uma forma que não invalidasse as experiências das pessoas transexuais. Eu tenho a certeza que, mesmo se/quando a noção de género for desconstruída, as pessoas transexuais e com disforia vão continuar a existir; talvez lhe dêem um nome diferente, talvez não lhe atribuam qualquer conotação de género, mas o fenómeno que hoje, nesta sociedade, chamamos de "disforia de género" irá continuar a existir. Eu digo isto tendo como base apenas a minha experiência pessoal (que vale apenas o que vale...); eu muito antes de saber o que era uma pessoa transexual, muito antes de "disforia" ter entrado no meu vocabulário, eu já me sentia disfórico. E, hoje em dia, mesmo após ter passado anos a tentar negar a minha própria disforia, mesmo depois de andar a tentar convencer-me que não era real, que conseguia convencer-me a mim próprio que conseguia viver como "um homem com vagina e mamas" e ser feliz assim... mesmo depois de tudo isto, um facto é que "disforia" continua a descrever bem o que eu sinto em relação ao meu género. 

Eu gostava de ver a palavra "disforia" a ser melhor aceite, estar a estigmatiza-la (ainda mais do que ela já é) e a tentar apaga-la não ajuda nada, na minha opinião.