on sábado, 10 de maio de 2014
Eu nunca fui pessoa de ligar muito ao Festival Eurovisão da Canção. Música pop (e uso uma definição muito abrangente de "pop"), nacionalismo e concursos de popularidade entre países nunca me foram muito apelativos. Já ouvi várias teorias sobre o festival estar bastante ligado à população LGBT, embora nunca tenha entendido bem porquê - sempre pensei que fosse por existir aquele estereótipo de os gays gostarem de divas pop ou algo assim. 

Este ano o festival chamou-me um bocado a atenção por causa da concorrente Austríaca, Conchita Wurst ou, como já ouvi várias vezes, "aquela mulher com barba". E soube hoje que, pelos vistos, foi precisamente essa mulher barbuda que ganhou o concurso este ano. 

Já desde a primeira vez que ouvi falar da concorrente fiquei com um misto de apreensão e entusiasmo. Por um lado, é bom ver pessoas a quebrar visivelmente normas de género num evento tão grande como a Eurovisão. Por outro lado, fiquei com medo de ver como é que os meios de comunicação social iam lidar com esta pessoa e, pior ainda numa vertente mais pessoal, fiquei com medo de voltar a ver amigos e conhecidos a dizer tretas transfóbicas, piadas sobre "travecas" e coisas do género (uma espécie de sequela das tretas que vi a propósito do concorrente transexual da última edição da casa dos segredos). Ver pessoas com quem lido diariamente a dizer barbaridades transfóbicas afeta-me mais do que aquilo que eu gosto de admitir. 

De qualquer forma, não pude ficar indiferente a toda esta situação, ainda mais agora que, sendo a vencedora do concurso, a Conchita vai atrair imensa atenção dos media. E, como eu não confio nos media, fui eu próprio tentar perceber quem é esta pessoa, Conchita Wurst, a mulher barbuda que ganhou o Festival Eurovisão da Canção.

Uma pesquisa rápida no google informou-me que o nome desta pessoa é Thomas Neuwirth, sendo a Conchita apenas um "stage name", o nome da sua performance de drag. Para quem não está familiarizado com o termo, "drag" refere-se a uma arte de performance, normalmente com música e/ou dança, durante a qual uma pessoa se veste e apresenta como uma versão exagerada do sexo oposto. Drag pode ser considerado uma forma de travestismo associado à arte e ao espetáculo. 

Apesar desta informação estar disponível facilmente, continuo a reparar que imensa gente ainda não percebe bem se Conchita é uma pessoa "real", se é uma personagem, se aquela pessoa é um homem, uma mulher, um travesti ou uma pessoa transexual. Muitas pessoas parecem achar que esta pessoa é um travesti e uma mulher transexual (sim, ambos...), o que está apenas parcialmente correto.

Para quem ainda tem dúvidas e, como eu, não confia nos media nem na wikipedia, nada melhor do que ouvir a própria pessoa a explicar a sua identidade. Fui procurar vídeos de entrevistas para tentar esclarecer este assunto definitivamente, e foi isto que encontrei...

Nesta entrevista, parece dar a entender que a Conchita é uma "persona" que o cantor inventou por volta de 2007 quando estava a tentar entrar no show bussiness, mas fora do palco é apenas "the lazy Tom". Aqui, menciona ter "criado" a mulher com barba com o objetivo de mostrar ao mundo que podemos ser o que quisermos, independentemente da cor de pele, nacionalidade, etc. A certa altura menciona também ser um "drag artist". 

Encontrei também uma entrevista durante a qual parece mencionar que se identifica não como homem ou mulher, mas como algo algures no meio: "there are people out there who are in between, you know?" e faz uma analogia onde se coloca no meio entre o masculino e o feminino.

As dúvidas dissipam-se totalmente quando, perguntado diretamente se a Conchita é uma expressão artística ou uma identidade de género, a resposta é "I's more of an artistic expression, and sometimes people confuse it with being a transgender person and it's definitely not. I'm a drag artist, I'm not a transgender person", sendo a Conchita um outlet que Thomas encontrou para se exprimir artisticamente. 

Recapitulando: a Conchita Wurst é a personagem inventada por Thomas Neuwirth para usar durante as suas performances de drag. Thomas não se considera transgénero e usa apenas a sua persona feminina em palco. 

A razão pela qual andei a vasculhar pelo youtube por estas entrevistas e a compilar alguma informação sobre o assunto aqui é porque gostava que as pessoas entendessem que esta pessoa, Conchita Wurst, não é transexual e, portanto, não representa a população transexual. 

Por favor, não usem esta pessoa para perpetuar as ideias erradas sobre a população transexual ser toda andrógina, confusa e excêntrica. Não que eu ache que exista nada de mal nas pessoas (trans ou cis) que são androginas ou excêntricas (seria um enorme self-hating hipócrita se o fizesse, ah), mas em casos destes é extremamente fácil as pessoas ficarem com a ideia errada e caírem no erro de começar a associar este tipo de excentricidade à população transexual. 

Espero com isto não ser mal interpretado. Como disse no início, acho ótimo começar a haver mais representação de pessoas que não se conformam com as normas de género. Enquanto estava a ver as entrevistas, não conseguia deixar de sentir uma admiração enorme pela Conchita, pela forma como ela se apresentava, pelas suas atitudes e pela mensagem de tolerância que transmitia. Acho ótimo uma pessoa como ela estar a ter toda esta atenção mediática porque parece-me que é uma pessoa bastante humilde, inteligente e "down to earth", uma ótima embaixadora pela tolerência e pela diversidade. 

O meu problema não é com a Conchita, mas sim com os meios e comunicação social e com a forma como estes distorcem a personagem e a pessoa por trás dela o que, invariavelmente, gera confusão entre a população.

Mas, enfim, a forma como a população transexual e trangénera é apresentada pelos media é daqueles temas que me deixava a escrever durante o resto da noite. Vou ter de deixar esse tema para uma outra ocasião. Antes disso deixo apenas o apelo para que, quando virem assuntos trans a aparecer nos meios de comunicação social, aceitem a informação com um grãozinho de sal. Os media são péssimos a retratar estes assuntos e, provavelmente, acabam por espalhar mais desinformação do que informação.

P.S: se estão curiosos sobre o título deste post, googlem "Dana International"