on domingo, 16 de novembro de 2014
Há dois dias mostraram-me um artigo de 'opinião' publicado na edição online de um jornal nacional que, volta e meia, não é opinião coisíssima nenhuma - é pouco mais do que um vómito de preconceitos do autor. Se alguém quiser ler esse atestado de ignorância, pode lê-lo aqui (não se preocupem que ao clicar nesse link não estão a dar mais tráfego ao site do jornal). Eu pensei em fazer um post ressabiado a criticar cada frase desse artigo, mas vou tentar fazer algo mais útil e atacar a raiz do problema.

O grande problema aqui parece ser o velho problema que sempre existiu entre a população em geral em relação à transexualidade: não nos vêem como homens ou mulheres e portanto consideram a transição como algo que, na melhor das hipóteses é apenas estético, na pior das hipóteses é uma mutilação e que nós devíamos é ser todos internados num hospital psiquiátrico. 

Começando pelas bases: um homem trans é um homem, uma mulher trans é uma mulher, independentemente da sua anatomia, expressão, personalidade, ou qualquer outro fator (o mesmo se aplica para pessoas fora dessas duas opções). Não faz sentido sequer questionar uma coisa destas porque não existe maneira de "medir" a identidade de uma pessoa, não existem critérios objetivos para avaliar a masculinidade ou feminilidade de alguém. As tentativas de "desenrrascar" esses critérios normalmente caem no determinismo biológico - "se nasces com um genótipo ou fenótipo normativamente masculino, és um homem e ponto final" - o que, além de ignorar toda a diversidade natural dentro da nossa espécie, é um critério arbitrário e obosleto. Não havendo critérios, a única opção é confiar na pessoa que declara a sua identidade como masculina/feminina/outra, tendo em conta que mais ninguém conhece melhor aquela pessoa do que ela própria. 

A identidade de género de alguém não é mensurável e, mesmo que fosse, não haveria qualquer interesse em pôr isso em causa porque é algo que apenas diz respeito à própria pessoa

No entanto, uma enorme parte do problema que as pessoas têm com a população trans estende-se não apenas à identidade por si só, mas ao que a pessoa trans decide fazer em relação a isso. Tudo à volta da transição é algo completamente alienígena e estranho à maioria das pessoas, portanto a maioria limita-se a ficar na ignorância e cede aos seus próprios preconceitos para formar uma "opinião" sobre o assunto. 

Por muito que as pessoas achem estranho, um facto é que a transição não é algo apenas estético, não é um capricho nem uma "maluqueira" que passa pela cabeça das pessoas trans. Se a palavra das próprias pessoas trans não for totalmente convincente (raramente o é, infelizmente), existem várias entidades médicas que reconhecem a transição como uma necessidade médica: a American Psychological Association "reconhece a eficácia, vantagens e necessidade médica da transição de género" e acrescenta que apoia a facilitação do acesso destas pessoas a cuidados médicos apropriados (ex: incentivando as seguradoras e o estado a cobrirem estes cuidados), à mudança da identidade legal, à não discriminação e à integração das pessoas trans na sociedade. A American Medical Association tem uma opinião semelhante, dizendo que existem provas suficientes para considerar a transição (incluindo tratamentos hormonais, cirurgias, etc) com algo benéfico e necessário às pessoas trans. O mesmo diz a American Psychiatric Association, a World Professional Association for Transgender Health, entre outros.

Relacionado com este ponto está o mito que diz que a transexualidade é uma doença mental. Tal também não é suportado pela maioria das entidades médicas já mencionadas. O Parlamento Europeu também concorda que a considerar a transexualidade uma doença psiquiátrica é condenável e apela aos países membros para mudarem essa classificação das vivências e identidades trans, para que simplifiquem o acesso à mudança de nome e para que os custos associados à transição sejam cobertos pelas seguradoras ou pelo estado. Está também explicitado no princípio 18 dos Princípios de Yogyakarta que a identidade de género nunca pode ser considerada uma patologia. A discriminação sofrida pelas pessoas trans pode estar relacionada com perturbações de ansiedade, depressão ou outras condições, mas isto é fruto da discriminação, não da identidade da pessoa [1]

A crença de que a transexualidade é uma doença mental muitas vezes leva as pessoas a pensar que é possível "curar" a transexualidade de alguém através de "terapias reparativas" ou persuadindo a pessoa trans a simplesmente "aprender a aceitar a sua identidade" (o seu género atribuído à nascença). Uma coisa que essas pessoas parecem ignorar é o facto de muitas pessoas trans terem tentado fazer precisamente isso: aceitar a sua "identidade", aprender a viver como um homem ou mulher, tentar convencer-se que não precisam de fazer a transição, que isso era uma ideia parva e que só iam estar a alimentar ilusões criadas por elas próprias. Não é algo pelo qual todas as pessoas passam, mas já vi este tipo de narrativa a ser descrito com alguma frequência entre pessoas trans (eu próprio passei por uma fase dessas). Portanto, essa ideia de "tentar aceitar o género que nos foi atribuído" não é nenhuma ideia genial, não é nada de novo nem de revolucionário e costuma ser das primeiras "soluções" que as pessoas tentam arranjar - por causa disto ainda fico admirado quando alguém propõe esta "solução" como se a ideia nunca tivesse surgido antes e nunca tivesse sido testada. 

Normalmente estas "terapias reparativas" são as mesmas que se fazem/faziam para curar a homossexualidade, e têm a mesma taxa de sucesso destas: zero. O máximo que pode acontecer é a pessoa trans reprimir a sua identidade e ficar assim "curada" de querer fazer uma transição, mas na realidade a identidade da pessoa não mudou. Esta "solução" entra diretamente em conflito com o que já foi mencionado acima sobre a transição ser algo eficaz e benéfico para as vidas das pessoas trans. Estas terapias têm sido repetidamente desacreditadas entre a comunidade médica uma vez que não nunca mostraram ser eficazes e, muitas vezes, constituem um atentado à dignidade da pessoa a ser "tratada" [2] [3] [4]. Sendo assim, essas terapias são contra-indicadas para a população trans, da mesma forma que o são para a população LGB (podendo até ser considerado como abuso de menores, caso o "alvo" da terapia seja uma criança). 

Finalmente, um dos "argumentos" que também vejo muito a ser feito por quem se opõe à transição é o dilema do "mas e se te arrependes?". Este é o único argumento para o qual eu ainda tenho alguma paciência porque não é baseado em preconceitos e por vezes é um medo real para as próprias pessoas trans. "E se eu chego a meio disto e quiser voltar para trás?" foi uma questão que me assombrou durante bastante tempo. No entanto, usar relatos de outras pessoas que se arrependeram como exemplo não é correto, uma vez que essas situações não são as mais comuns (embora recebam imensa atencão mediática, porque mais estranho do que alguém que "muda de sexo" é alguém que o faz duas vezes e que ainda dá "credibilidade" aos preconceitos da população). Na realidade, a percentagem de arrependimento é muitíssimo baixa. Por exemplo, num estudo que acompanhou 232 mulheres trans, nenhuma expressou arrependimento (dizendo até que estavam mais felizes). Aqui, entre mais de 400 pessoas, a grande maioria reportou que não se arrepende de nenhum dos passos da transição (sendo que as 3 pessoas que se arrependeram de algum passo, arrependeram-se de fazer uma histerectomia ou eletrólise, mas não se arrependeram dos outros passos). Na Europa ocidental, a taxa de arrependimento após o início do tratamento hormonal ou cirurgias ronda os 1.83%, sendo que os autores do estudo notaram é difícil distinguir entre quem se arrependeu por ter chegado à conclusão que afinal não era trans, e quem se arrependeu devido a pressões sociais, familiares e discriminação em geral. 

Ao longo deste texto tentei ir citando fontes credíveis para justificar o que disse (os sites e artigos são quase todos acessíveis ao público e, os que não são, têm a informação citada disponível no abstract) porque considero importante ter alguma fundamentação quando tento construir um argumento com pés e cabeça. Não podemos confiar nas opiniões de gente ignorante e que não faz qualquer esforço real para se informar mas que, apesar disso, age como se tivesse conhecimento ou opiniões relevantes nesta discussão. 

Eu também ia abordar outros temas relacionados com as várias intervenções médicas ou tratamentos hormonais (visto que também ainda existe uma quantidade enorme de desinformação a circular sobre os mesmos) mas este post está a ficar demasiado grande. Portanto, fica aqui o lembrete para o fazer num post futuro. 

Entretanto, caso queiram opiniões relevantes e factos sustentados e verificáveis, tentem entrar em contacto com pessoas trans ou associações sérias que lidem com o assunto. Além disso, o google é vosso amigo (sempre com uma pitada de bom senso e espírito crítico) e se estiverem à procura de factos palpáveis e estudos científicos sobre o assunto, o Scholar pode ser bastante útil. Deixo também esta lista bastante grande de literatura caso alguém tenha vontade e paciência para ir lendo o que lá se encontra.