Perguntas Frequentes (Parte 2): Narrativas Padrão e Outras Inquietações

on domingo, 12 de abril de 2015
Aqui está a 2ª parte da série "Perguntas Frequentes". Podem consultar a 1ª parte, referente a questões mais ligadas à transição clínica e legal, aqui

Só depois de ter acabado de redigir este post é que me ocorreu que a ordem dos posts das "Perguntas Frequentes" devia ter sido ao contrário. Este contém mais perguntas vindas de pessoas que ainda estão na fase de questionamento e descoberta da sua identidade, só avançando para a transição propriamente dita (que é o tema da primeira parte desta série) mais tarde. Mas pronto, agora fica assim.

Também me lembrei que, sendo um homem, frequento maioritariamente espaços para homens trans. Podem haver questões que surjam com mais frequência entre as mulheres trans, mas eu nao tenho acesso a isso porque não costumo frequentar espaços exclusivamente femininos. Portanto acho importante deixar esta nota e reconhecer o enviesamento na minha perceção do que são as perguntas mais frequentes.



Comecei a pedir às pessoas para mudarem o nome e pronomes que usam comigo, mas sinto-me mal/constrangido quando o fazem. O que é que isto significa?
Significa que velhos hábitos são difíceis de ultrapassar. Depois de passarmos uma vida inteira a sermos tratados por um nome, é estranho de repente isso mudar. Podemos estranhar o novo nome (mesmo sendo um nome que nós próprios escolhemos), podemos sentir que as pessoas só o usam para nos "fazer o favor", podemos sentir que é algo forçado e que estamos a ser um inconveniente para as outras pessoas. Tudo isto é normal e passa com o tempo, à medida que nos habituamos. 
Normalmente as pessoas que colocam esta questão estão preocupadas porque pensam que isto pode significar que, na realidade, mudar o nome foi um erro e que não são mesmo transexuais. Isto pode corresponder à realidade em alguns casos, caso não se sintam bem com qualquer um dos passos da vossa transição, parem e pensem bem se é aquilo que vos faz sentir bem antes de avançar mais. No entanto, na maioria dos casos que vejo, é apenas uma questão de insegurança e dificuldade em ultrapassar o hábito do antigo nome. Passado algum tempo as pessoas já me dizem que afinal está tudo bem e que se sentem mal é quando alguém lhes trata pelo nome anterior.


Não planeio fazer qualquer modificação aos meus genitais. Será que sou mesmo trans?
relacionada com:
Ainda não modifiquei os meus genitais, mas consigo ter relações sexuais/masturbar-me, ter prazer e atingir o orgasmo. Significa isto que na realidade não serei mesmo trans?
ou, mais genericamente:
Eu não rejeito por completo o meu corpo. Serei mesmo trans?
Sim, é possível estarmos bem com os nossos genitais (ou outras partes do nosso corpo) e ser transexual. Ao contrário do que é divulgado em quase tudo o que é sítio, ser transexual não significa que odiamos o nosso corpo, ou que sintamos que estamos no "corpo errado". Há pessoas que se identificam com este tipo de narrativa, mas não é uma regra, e há cada vez mais pessoas trans que parecem rejeitar este tipo de descrição para si próprias. Este tipo de ideia continua a ser reforçado hoje em dia porque é uma forma "fácil" de a população cis compreender e normalizar a nossa existência - é mais fácil dizer que as pessoas trans estão no corpo errado do que admitir que nem todas as pessoas encaixam nas expectativas anatómicas do que é um homem ou uma mulher. É o mesmo problema associado à palavra "disforia" que é descrita como um "ódio ao corpo", quando na realidade é algo mais complexo e com mais tons de cinza do que isso.
Na realidade, cada pessoa trans tem a sua própria relação com o seu corpo. Há quem sinta que realmente está num corpo totalmente errado, mas também há quem não rejeite por completo todas as características sexuais primárias ou secundárias. 


Eu tenho gostos muito femininos/masculinos, será que sou mesmo um homem/mulher trans?
Os nossos gostos pessoais nada têm a ver com a nossa identidade de género. É possível um homem gostar de usar vestidos cor-de-rosa e uma mulher entender imenso de mecânica automóvel. Esse tipo de papeis de género é algo completamente artificial e que não revela nada sobre a nossa identidade nem retira legitimidade à nossa masculinidade ou feminilidade. Não há nada de errado em gostar de coisas que a sociedade define como sendo do "sexo oposto", e não é por sermos transexuais que temos de obedecer a essas regras artificiais e arbitrárias. 


Tenho imensas dúvidas em relação a aquilo que preciso (ou não) na transição. Sinto que essas dúvidas retiram legitimidade à minha identidade. Serei mesmo trans?
Esta é das questões que mais me faz ferver o sangue - não por causa da pessoa que colocou a pergunta, mas pelo o que levou a pessoa a ter esta dúvida. Não, ninguém é "menos" trans por ter dúvidas. Ter dúvidas é extremamente normal e expectável, e é horrível existir este mindset de que nós temos de ter 100% de certeza de tudo o que precisamos para nos sentirmos "legítimos". Ter dúvidas, por si só, pode ser algo que nos consome e aterroriza durante este processo, mas pior que isso é começarmos a questionar a nossa própria identidade porque "não é suposto" termos dúvidas. É normal ter dúvidas em relação à nossa identidade, em relação à terapia hormonal, em relação às cirurgias, em relação a qualquer passo do processo de transição. A transição é algo sério e que muda a nossa vida, por vezes de forma irreversível - estranho seria se não tivéssemos dúvidas! Duvidar é bom, faz-nos pensar, ponderar bem e procurar as melhores soluções para os problemas. 
Portanto, se tiverem dúvidas, não se sintam inibidos. Falem com as pessoas, procurem informação e mantenham a mente aberta para as respostas que forem descobrindo. 


Quando era criança não sabia que era trans/não insistia com os meus pais que pertencia ao sexo oposto/tinha comportamentos típicos do género que me foi atribuído. Serei mesmo trans?
Nem todas as pessoas trans sabem que o são desde a infância. Normalmente este "estereótipo" da pessoa que sabe que é trans e que reza a deus para que lhe cresça (ou caia) a pilinha desde os 5 anos é apenas isso - um estereótipo. É algo que aparece em quase tudo o que é reportagem ou documentário sobre o assunto porque é muito mais fácil criar empatia por uma criança (cuja transexualidade é vista como algo inquestionavelmente inato e inocente) do que por um adulto (que é visto como um pervertido ou mentalmente perturbado). Já vi também algumas pessoas trans a confessarem que, embora não saibam desde pequeninas, dizem às pessoas o contrário numa tentativa de tentar ser mais facilmente aceites pelas pessoas à sua volta. Portanto, este é um estereótipo que parece conservar-se a si mesmo, não por corresponder à realidade, mas porque as pessoas confirmam-no mesmo que não se identifiquem com ele. 
Tudo isto para dizer que não, não é por não sabermos ou não insistirmos com os nossos pais desde crianças que deixamos de ser transexuais. 


Tenho medo que os médicos e psicólogos não me deixem avançar para a transição. Devo mentir-lhes para que me facilitem a vida?
Não. Mentir aos profissionais de saúde nunca é uma boa ideia e acaba por ser contraproducente. Existem relatos de casos em que os médicos se revelaram uns enormes idiotas e atrasaram imenso a vida a algumas pessoas mas, felizmente, esses relatos parecem ser cada vez menos e as alternativas cada vez mais. Os relatos que vejo de casos de médicos-bestas envolvem sempre o médico a "avaliar" a pessoa de acordo com critérios absurdos de masculinidade ou feminilidade, o que significa que a única forma de os persuadir seria criar uma fachada enorme que correspondesse ao que esse médico entende que é um homem ou mulher "a sério". Caso não tenham mais nenhuma alternativa, então façam o que tiverem a fazer para ultrapassar esse médico. No entanto, ao faze-lo estão a colaborar com uma pessoa que não tem o vosso melhor interesse em mente e que, caso um dia precisem mesmo da ajuda dele, provavelmente não a terão. Muito melhor será desistirem desse médico e procurarem outro. Hoje em dia já não vivemos tão isolados uns dos outros, é mais fácil encontrarmos informações sobre outros médicos e sobre opiniões dos utentes em relação aos mesmos, não precisamos de nos (nem devemos) prender a maus profissionais de saúde. 


Estou à espera para começar a terapia hormonal há imenso tempo. Há alguma alternativa que possa tomar enquanto espero?
Esta pergunta muitas vezes vem associada a "remédios caseiros" ou "suplementos naturais" que dizem aumentar os níveis de testosterona ou estrogénio da pessoa. Eu não sei até que ponto esses suplementos realmente fazem o que dizem, mas mesmo que tenham algum efeito esse será residual e nunca se comparará aos efeitos da terapia hormonal. E, provavelmente, serão caros. O melhor é não gastar dinheiro e expectativas com esse tipo de alternativas.


Posso, legalmente, usar o WC concordante com o género com o qual me identifico?
Em Portugal não há nenhuma lei que regule esta questão. O ideal para escolher o WC onde vamos é usar senso comum. Quem é visto pelas outras pessoas, consistentemente, como o género com o qual se identifica poderá frequentar espaços específicos do género com o qual se identifica (ex: as pessoas vêm-me como um homem, portanto eu posso ir ao WC masculino sem problemas). No entanto, se a maioria das pessoas não vos vir como pertencentes ao vosso género, entrar num WC concordante com o vosso género pode ser perigoso.


Ás vezes as pessoas (amigos, familiares) fazem-me perguntas invasivas. Como é que respondo a isto?
Responde da forma que te sentires mais confortável. No entanto tem em conta que, lá por sermos transexuais, não temos a obrigação de sermos um recurso de informação sempre disponível para as outras pessoas. Temos as nossas próprias reservas e limites de paciência para responder e explicar as nossas vidas ou escolhas a outras pessoas. Nós não temos de nos justificar a toda a gente, não temos de ter a validação de toda a gente nem temos de ser ativistas se não quisermos. Portanto, cabe a cada um decidir que informação quer revelar sobre si próprio ou sobre a questão da transexualidade em geral. 

0 comentários:

Enviar um comentário