on sexta-feira, 22 de maio de 2015
Com o aproximar do mês de junho, recomeçam os debates em torno das marchas do orgulho e, um bocado "de arrasto" ao tema, do ativismo LGBT. Ultimamente, a maioria das conversas que tenho tido à volta deste tema prendem-se com o sentido que faz (ou não) incluir questões relativas à identidade de género num movimento que, 99% das vezes, fala apenas em questões relativas à orientação sexual.

A inclusão do "T" na sigla "LGBT" é motivo de debate já há bastante tempo. Não é minha intenção entrar por aí neste momento, mas fica aqui mais um tema para a minha crescente pilha de "temas a abordar no futuro". 

Independentemente dos motivos que levam a que o T esteja associado ao resto do movimento LGB, um facto é que essa associação existe, embora seja na maior parte das vezes apenas simbólica. A grande maioria das associações e coletivos LGBT na realidade dão apenas atenção aos primeiros 3/4 da sigla e lembram-se do "T" quando é conveniente para a sua agenda ou para mostrar que são "inclusivos". Isto torna-se óbvio nos discursos e iniciativas dessas entidades, que são quase exclusivamente dirigidos à população LGB de tal forma que parece que nem sequer se lembram que o T lá está. Na maior parte dos casos nem sequer chega a ser uma exclusão ativa do T, é simplesmente um enviesamento na forma como as pessoas pensam, algo quase inconsciente, que leva a que a sigla LGBT seja usada como sinónimo de "gays e lésbicas" (a população bissexual é também frequentemente deixada de fora). Por exemplo, quando divulgam estudos dirigidos à população LGBT, mas depois dizem que estão à procura apenas de "homens ou mulheres homossexuais", ou quando tiram conclusões sobre a percentagem de "pessoas LGBT" que estão fora do armário usando um questionário que lhes perguntava apenas sobre a sua orientação sexual. 

Este tipo de atitude aparece não só nestes momentos mais "pequenos" e aparentemente menos significantes, é algo transversal a todo o movimento e ativismo LGBT. Esquecem-se do T na hora de reivindicar direitos e no planeamento de outro tipo de atividades. Quando se lembram, muitas vezes esquecem-se de perguntar às pessoas T exatamente quais são os direitos que precisamos de reivindicar ou o que é que gostaríamos de ver nos eventos. O resultado disto é uma representação, quando não totalmente ausente, distorcida (e por vezes até antagónica) da população trans em espaços LGBT. 

Depois há o outro lado da moeda: a representação do T é má porque as pessoas T não se fazem representar. É raríssimo encontrar pessoas trans em posições relevantes dentro das associações e coletivos LGBT. Há quem argumente que isto é o que está na origem de todo este problema, no entanto eu acho que isso é estar a pôr as coisas do avesso. Não é tanto a ausência de pessoas trans que causa uma má representação no ativismo - o que acontece é que a maioria das pessoas trans não encontra aquilo que precisa nas associações LGBT, portanto nunca ganham interesse em envolver-se no trabalho das mesmas. Este é um sentimento que vejo com bastante frequência entre pessoas trans. Eu próprio sinto isso muitas vezes.

Quando estava a começar a procurar informação e ajuda para iniciar a minha transição, os primeiros sítios onde procurei foram associações e coletivos LGBT. Nunca cheguei a encontrar a informação que precisava nesses locais. Consegui ir fazendo alguns contactos úteis, mas a informação que precisava não estava facilmente acessível nem fazia parte das ferramentas e know-how dessas associações. 

Por alguma razão, fui mantendo contacto com essas associações (penso que uma boa parte da razão para tal foi uma tentativa de permanecer em negação em relação à minha identidade de género, descartar o problema como sendo apenas uma questão de orientação sexual) até aos dias de hoje. Neste momento, trabalho junto da rede ex aequo, estou envolvido em alguns dos seus projetos e faço parte da atual equipa da direção. Este trabalho tem sido um desafio interessante em vários sentidos, mas há algo que começo a reparar e que me tem feito pensar: há pessoas trans dentro da rede ex aequo, estão é escondidas. 

Há cerca de um ano atrás, em conversa com uma amiga, ela congratulou-me por ser a primeira pessoa trans a fazer parte da coordenação de um grupo local da rede ex aequo. Hoje em dia, teria de a desmentir: já houve outras pessoas trans em coordenações de grupos locais antes de mim. O problema era que essas pessoas não eram assumidamente trans. (aliás, eu próprio estive nessa situação em tempos: coordenava um grupo local mas ainda me apresentava no feminino)

Eu só me apercebi disto quando essas pessoas vieram ter comigo e me contaram que eram trans mas que nunca tinham dito nada a ninguém, em parte porque nunca tinham conhecido mais ninguém trans nem sabiam bem por onde começar a abordar o assunto (mesmo dentro da própria associação). Também já tive outras pessoas que, não fazendo parte de nenhum projeto da associação, me confidenciaram que eram trans, mas que também não sabiam o que fazer e não encontravam aquilo que precisavam na associação. 

Um fenómeno curioso que também tenho notado é em relação ao fórum da associação. Quem o visitar fica com a ideia que há uma ou duas pessoas trans por lá (isto se conseguir encontrar os tópicos onde as questões trans são abordadas). Costumam ser sempre as mesmas pessoas a levantar esses assuntos e a responder aos poucos pedidos de apoio que vão surgindo de longe a longe. Por outro lado, quem espreitar na minha caixa de entrada de mensagens privadas, vê um cenário bastante diferente. Por esta altura a minha caixa de entrada está repleta de mensagens trocadas com pessoas trans que, apesar de não participarem no fórum, andam por lá à procura de apoio. Também surgem alguns emails enviados para o email geral da associação a pedir apoio na vertente trans, mas são em menor número. 

Isto leva-me a ter de reforçar a importância de:
1) haver pessoas visivelmente trans, e acessíveis, dentro das associações LGBT
2) haver sensibilidade para não alienar as pessoas trans que já andam nas associações LGBT

(uma nota sobre a  expressão "visivelmente trans": não me refiro a ter de haver pessoas que sejam publicamente trans, mas sim a haver alguma forma de identificar pessoas trans dentro dos espaços e eventos da associação. Por exemplo, eu faço questão em identificar-me como trans no fórum e dou "carta verde" aos meus colegas dos vários projetos da associação para que revelem que sou trans a outras pessoas caso isso seja relevante no contexto das atividades da associação. No entanto, fora da associação, a minha transexualidade pode permanecer privada)

Ou seja, é importante, antes de pedirmos às pessoas trans que se mostrem, criar um ambiente que seja convidativo a que elas se mostrem. É importantíssimo não descurar as questões trans, não só para "chamar" e manter essas pessoas nas associações, mas principalmente porque, provavelmente, elas já cá estão. O facto de permanecerem escondidas é um sintoma da falta de preparação e sensibilidade que a maioria das associações tem em relação a estas questões. 

Não sei se posso assumir (mas vou assumir na mesma) que algo semelhante se passe em outras associações LGBT. As pessoas trans andam por lá, mas estão bastante relutantes em fazerem-se ouvir.