on quinta-feira, 22 de outubro de 2015
Antes de começar: quero frisar que eu não sou médico e não tenho formação em medicina. A informação aqui contida deve ser usada apenas para fins educacionais e nunca em substituição de consultas com médicos qualificados. Se tiverem qualquer dúvida clínica, perguntem ao vosso médico. 

Dito isto, gostava de partilhar um bocado da informação que fui acumulando sobre e terapia hormonal com testosterona e sobre hormonas em geral. 

Começando pelo básico - o que é uma hormona? 
Uma hormona é uma molécula sinalizadora, ou seja, serve para transportar sinais pelo corpo. As hormonas são produzidas por glândulas e viajam através do sistema circulatório (veias e artérias) até ao local onde têm de deixar a sua mensagem. 
Exemplos de glândulas que produzem hormonas incluem: tiróide, hipófise, glândulas suprarrenais e gónadas (testículos ou ovários). 

Existem imensos tipos de hormonas diferentes e que regulam imensos fenómenos, entre os quais: metabolismo, crescimento, sono, humor, reprodução, etc. O conjunto de todas as hormonas e das glândulas que as secretam é conhecido como o sistema endócrino.

Mas como é que as hormonas sabem onde é que têm de entregar as suas mensagens? 
Cada hormona tem um tipo de recetor específico e que só existe em locais específicos do corpo. Esses recetores são moléculas que se encontram, normalmente, na superfície das células. Quando uma hormona se liga a um recetor, vai desencadear uma série de mudanças na célula que culminam em algum tipo de efeito a curto, médio ou longo prazo. As hormonas só podem fazer os seus efeitos se se ligarem aos recetores adequados - ou seja, se esses recetores por alguma razão estiverem todos ocupados, indisponíveis ou ausentes, as hormonas não fazem efeito nenhum. 

Ilustração da interação hormona-recetor


Há hormonas que se podem ligar a recetores diferentes, e há recetores que podem reconhecer diferentes hormonas. No entanto, os efeitos em cada caso podem ser diferentes. Por exemplo, se a hormona "A" se ligar ao recetor "1" pode induzir efeitos diferentes caso a mesma hormona se ligasse ao recetor "2". Da mesma forma, se o recetor "1" receber a hormona "A" vai causar efeitos diferentes de que se tivesse recebido a hormona "B". Existem imensas hormonas e imensos recetores diferentes, pelo que a combinação de diferentes hormonas com diferentes recetores dá origem a um número enorme de interações e efeitos induzidos pelas hormonas. 

A especificidade das hormonas e recetores é mediada, principalmente, pela forma e geometria, embora possa haver alguma adaptação e variação.


E como é que o corpo sabe que hormonas é que tem de produzir?
O nosso corpo tem sistemas de auto-regulação hormonal, a maioria funciona como um mecanismo de feedback negativo. Pensem neste mecanismo como a regulação de uma torneira quando estão a tomar banho: se se sentirem a escaldar, desligam um bocado a torneira da água quente. Quando começam a sentir frio, ligam a quente até estarem confortáveis com a temperatura do vosso chuveiro.

Ou seja, quando o corpo deteta que tem quantidades de hormona "A" a mais, deixa de a produzir (ou produz níveis mais baixos). Da mesma forma, se detetar que não há hormona "A" suficiente no sangue, começa a produzir mais. As formas como o corpo deteta os níveis hormonais são complexas e não completamente compreendidas atualmente, mas sabe-se que funcionam e que nos mantêm saudáveis (na ausência de condições patológicas, claro). 

Testosterona e Estrogénio - Esteróides Sexuais
Esteróides sexuais são as hormonas que interagem com recetores de androgénios ou estrogénios. Incluem os androgéneos, estrogénios e progestágenos. Dessas, as mais "famosas" são, respetivamente, a testosterona, o estradiol e a progesterona. Estas hormonas são produzidas, principalmente, nos gónadas (testículos ou ovários), mas também são produzidas em menores quantidades nas glândulas suprerrenais, tecido adiposo, fígado e em outros tecidos. 

Uma nota sobre esteróides: muita gente parece ficar alarmada quando ouve dizer que a testosterona e o estrogénio são esteróides. Existe algum estigma em relação a esta palavra por causa das notícias que reportam o abuso de esteróides por atletas. Na realidade, "hormona esteróide" significa apenas que é uma hormona que é fabricada a partir do colesterol. Outros exemplos de hormonas esteróides são os glicocorticóides (participam na regulação do sistema imunitário) ou a aldosterona (contribui para o bom funcionamento dos rins). 

Comparação entre as moléculas de colesterol, testosterona e estradiol.Como podem ver, são bastante parecidas entre elas


Apesar de se dizer que a testosterona é a "hormona masculina" e que o estradiol é a "hormona feminina", toda a gente produz alguma quantidade de ambas as hormonas. A proporção entre uma e outra é que acaba por ser bastante diferente de acordo com o tipo de gónadas que uma pessoa tem. Aquando da puberdade, uma pessoa vai começar a produzir testosterona ou estradiol em maiores quantidades conforme tenha testículos ou ovários, respetivamente.

Um ponto importante sobre estas hormonas é o facto de toda a gente, independente do sexo, ter recetores para ambas as hormonas no seu corpo.

O Papel dos Esteróides Sexuais
Os esteróides sexuais têm um papel crucial no desenvolvimento das características sexuais secundárias de uma pessoa. 

Características sexuais secundárias são características que se desenvolvem a partir da puberdade devido ao efeito dos esteróides sexuais. No entanto, não têm nenhum papel direto na reprodução. Exemplos incluem: crescimento de pêlo facial ou corporal, mamas, o timbre da voz, o padrão de distribuição da gordura corporal, etc. 

Características sexuais primárias são aquelas que estão presentes desde a nascença, desenvolvem-se mais na puberdade e intervêm diretamente na reprodução. Basicamente, são os órgãos genitais externos e os gónadas (e todas as estruturas associadas aos mesmos). 

Durante a puberdade, os androgénios vão induzir mudanças como o aumento da pilosidade facial e corporal, o abaixamento do timbre da voz, desenvolvimento da massa muscular, etc. Ou seja, características geralmente associadas ao sexo masculino.

Por sua vez, os estrogénios vão causar o crescimento de mamas, o início do ciclo menstrual (se a pessoa tiver os órgãos internos necessários para que tal aconteça) e todas as características geralmente associadas ao sexo feminino. 

Como é que o corpo decide se deve produzir mais testosterona ou estradiol?
Como já referido, estas hormonas são produzidas nos gónadas. No entanto, não são os gónadas que "decidem" em relação à quantidade de hormonas que o corpo produz. A regulação destas hormonas é um trabalho de equipa entre os gónadas e o hipotálamo. 

O hipotálamo é uma região do cérebro que é extremamente importante na regulação hormonal - não só das hormonas sexuais. A temperatura corporal, fome, sede ou sono são tudo coisas controladas pelo hipotálamo. É uma ponte de ligação entre o sistema nervoso e o sistema endócrino.



Localização do hipotálamo. Imagem roubada daqui » http://brainmadesimple.com/hypothalamus.html

Quando o hipotálamo deteta níveis baixos de testosterona ou estrogénio no sangue, liberta uma hormona chamada Gonadotropin-releasing hormone (GnRH), que viaja até à hipófise (uma glândula que fica muito perto do hipotálamo). Esta hormona tem como função, tal como o seu nome sugere, estimular a libertação de gonadotropinas. 

Existem duas gonadotropinas: hormona luteinizante (LH) e a hormona folículo-estimulante (FSH, do inglês Follicle-stimulating hormone). Tanto a LH como a FSH são produzidas na hipófise e viajam até aos gónadas. Lá, a FH estimula a produção de testosterona ou estrogénio (conforme a pessoa tenha testículos ou ovários, respetivamente). A FSH promove a iniciação da maturação dos gâmetas (espermatozóides ou ovócitos).

No caso contrário, caso o hipotálamo detete níveis elevados de testosterona ou estrogénio, inibe a libertação de GnRH, o que por sua vez vai inibir a libertação de LH e FSH para o sangue, diminuindo assim a produção de testosterona ou estrogénio. 

(1) os gónadas produzem pouca testosterona ou estrogénio
(2) o hipotálamo, em resposta aos níveis hormonais baixos, produz GnRH, que é enviado para a hipófise
(3) a hipófise liberta LH e FSH para a corrente sanguínea
(4) a produção de testosterona ou estrogénio é aumentada 


E como é que isto tudo interage com a terapia hormonal com testosterona?
Durante a terapia hormonal com testosterona, estamos a introduzir testosterona no nosso corpo. Isto, por si só, vai causar o desenvolvimento das características sexuais secundárias. Como dito anteriormente, todas as pessoas têm recetores para todas as hormonas, daí a testosterona conseguir exercer os seus efeitos num corpo que, naturalmente, teria níveis de testosterona muito mais baixos. 

As mudanças induzidas pelas hormonas podem acontecer a curto, médio ou longo prazo. Por exemplo, um dos efeitos da testosterona é a estimulação dos folículos pilosos (responsáveis pelo crescimento de pêlo). Isto, normalmente, demora bastante tempo (meses ou anos) porque acontece pela mudança da expressão genética das células dos folículos, e tudo o que envolva mudar a forma como os nossos genes se comportam demora bastante tempo. 

Algo importante a considerar é o facto de existir um número limitado de recetores hormonais no nosso corpo. Se houver mais moléculas de testosterona do que recetores, as moléculas extra não estão lá a fazer nada, porque não têm forma de se ligar a lado nenhum. Isto significa que existe um ponto a partir do qual não adianta aumentar a dose da medicação que tomamos na nossa terapia hormonal. Os efeitos das hormonas e o timming com que aparecem não é algo estritamente linear. 

Aliás, a partir de certo ponto pode ser contraproducente aumentar a quantidade de testosterona que introduzimos no nosso corpo, uma vez que parte dela pode ser convertida de volta a estrogénio. Este é outro mecanismo de regulação hormonal que o nosso corpo pode accionar caso detete níveis demasiado elevados de testosterona. Existe uma molécula chamada aromatase que é importante para a síntese de estradiol. Essa molécula pega numa molécula de testosterona e transforma-a em estradiol. Portanto, ao achar que estamos a aumentar o nosso nível de testosterona, podemos estar é a aumentar o nível de estradiol.

Mecanismo geral da conversão de testosterona em estradiol. Imagem roubada da Wikipédia.


Ao fim de algum tempo da terapia hormonal, o equilíbrio hormonal no nosso corpo começa a mudar e o hipotálamo começa a aperceber-se de que já existe uma quantidade considerável de esteróides sexuais em circulação. Isto vai desencadear o processo de feedback negativo descrito acima, a produção de GnRH vai diminuir, o que por sua vez vai culminar numa diminuição da produção de estrogénio e na interrupção do ciclo menstrual. Isto costuma acontecer dentro dos primeiros 6 meses da terapia hormonal (mas este prazo pode variar consoante a pessoa). 

Uma nota/curiosidade em relação à regulação do mecanismo de feedback: cá em Portugal, tanto quanto sei, ainda não se usam os chamados "bloqueadores de puberdade". Estes são compostos que podem ser dados a uma pessoa que ainda não tenha entrado (ou que esteja ainda nas fases iniciais) na puberdade. O que essa medicação faz é bloquear os recetores de GnRH de forma a que a hipófise não receba esse sinal e nunca produza as gonadotropinas, o que por sua vez vai inibir a produção dos esteróides sexuais e assim atrasar o início da puberdade. Daí esses compostos também serem conhecidos como "bloqueadores de GnRH" ou "análogos de GnRH".

Fica aqui as bases para começar a compreender melhor o funcionamento da terapia hormonal com testosterona (ou com estrogénio! Os princípios básicos aplicam-se na mesma, embora existam algumas diferenças; poderá ser algo a explorar neste blog no futuro). Num post futuro vou continuar a elaborar mais sobre os efeitos da testosterona e sobre os tipos de medicação usados mais frequentemente.