on quarta-feira, 12 de outubro de 2016
Há alguns meses atrás o Bloco de Esquerda apresentou uma proposta de lei para substituir a atual (única e primeira) lei de identidade de género. Ando desde então para lê-la com atenção e formar uma opinião, mas só agora que o PAN fez o mesmo é que decidi meter mãos à obra mais a sério. Tencionava falar sobre ambas as propostas num únco post, mas depois o texto começou a ficar demasiado extenso, portanto vou dividi-lo em dois posts, um para cada proposta. O "selling point" dessas propostas centra-se na garantia da autodeterminação de género para as pessoas trans - ou seja, na possibilidade de uma pessoa poder mudar de nome e marcador de sexo nos seus documentos sem para isso ter de apresentar qualquer diagnóstico de disforia, de perturbação de identidade ou do que mais lhe quiserem chamar. 


Eu sou da opinião que as pessoas trans deveriam poder autodeterminar o seu género e vê-lo reconhecido pelo estado sem qualquer intervenção ou autorização de terceiros, incluindo de quaisquer profissionais de saúde. O processo clínico deveria estar completamente divorciado do processo legal de transição e, da mesma forma que o acesso aos cuidados de saúde não está dependente da mudança de nome e sexo nos documentos, a mudança de nome e sexo nos documentos não deveria estar dependente do estado do nosso processo clínico. A lei atual quase que consegue atingir este ideal, não colocando qualquer requisito relacionado com a transição física: não exige nenhuma cirurgia ou tratamento hormonal. O que exige é um relatório clínico que comprove que foi feito um diagnóstico de disforia de género/perturbação de identidade de género. 

Dito isto, torna-se óbvio que encaro estas propostas de lei como positivas, mas não posso deixar de fazer uma análise crítica às mesmas. 

Começando então pelo texto introdutório da proposta do BE.

Ao longo do texto referem várias vezes não só a questão da identidade de género, mas também a de expressão de género. Coloco em causa a relevância da menção às questões relacionadas com a expressão de género, quando tal é irrelevante na definição da identidade de uma pessoa. O facto de uma pessoa ter uma expressão diferente da norma não faz dessa pessoa trans, ao contrário do que o texto parece sugerir. É certo que existe muita discriminação direcionada às pessoas cuja aparência difere daquilo que está estabelecido como sendo a "aparência correta" para um determinado género, mas isso é um problema separado do problema da autodeterminação (da identidade) de género.

Mencionam também identidades de género não binárias sem, no entanto, as incluirem na lei per se, uma vez que a lei contempla apenas mudanças do marcador de género de F para M ou vice-versa. 

A certa altura durante o texto citam várias entidades de forma a construir o argumento de que as pessoas trans não devem ser obrigadas a submeter-se a qualquer intervenção física (cirúrgica e/ou farmacêutica) para que lhes seja reconhecido oficialmente o seu género. Fica incerto o motivo deste argumento nesta proposta de lei, uma vez que a lei atual já permite que mudemos o nosso nome e marcador de sexo sem qualquer intervenção física. A única citação que faz sentido neste contexto é a última, que menciona os diagnósticos de saúde mental como requisitos abusivos para a mudança de nome e sexo.

Ainda sobre intervenções clínicas, o BE diz que esta lei pretende garantir o acesso aos cuidados de saúde para as pessoas trans que dele necessitem. O acesso aos cuidados de saúde, através do SNS, no âmbito de uma transição já estão, em teoria, assegurados. Isto inclui consultas de várias especialidades, tratamentos farmacológicos e cirúrgicos e, na falta de resposta do SNS, o acesso aos cheques-cirurgia. Isto tudo não é novo, já existe e já se aplica a nós. Em teoria. Na prática, as coisas funcionam muito mal. Não creio que será com uma lei (qualquer lei que seja) que as coisas subitamente comecem a funcionar corretamente. A intenção parece ser boa, mas fútil (até porque não dizem de que forma pretendem assegurar o acesso a estes cuidados de saúde). 

Vamos então olhar para a proposta de lei propriamente dita.

Esta proposta mantém a confidencialidade do processo e assegura que a mudança não pode ser mencionada no novo asento de nascimento da pessoa (artigo 6º, ponto 5). A lei atual refere apenas que "Este procedimento tem natureza secreta." (artigo 1º, ponto 2), enquanto que esta proposta diz que "Este procedimento tem natureza confidencial, exceto a pedido do requerente, dos seus herdeiros e das autoridades judiciais ou policiais para efeitos de investigação ou instrução criminal." (artigo 1º, ponto 2). Também à semelhança da lei atual, a proposta do BE coloca um prazo máximo de resposta em 8 dias a contar do dia em que o pedido de mudança de nome e sexo é feito (artigo 7º ponto 1).

No artigo 3º, ponto 1, alínea a, referem que uma pessoa deve ter o direito ao reconhecimento da sua expressão de género, sem tornar claro o que é que isto significa. Compreendo o direito ao reconhecimento da identidade, mas o que é que significa "reconhecer uma expressão" do que quer que seja? No mesmo artigo e ponto, na alínea seguinte, dizem que uma pessoa deve ter o direito a ser tratada de acordo com a sua (identidade e/ou) expressão de género, o que mais uma vez me faz questionar exatamente o que é que isto significa e se não seria mais adequado referir apenas a identidade. Identidade e expressão de género são coisas distintas. Estar a colapsa-las desta forma não me parece de forma alguma útil ou sequer lógico. Idem aspas para a alínea seguinte desse ponto e artigo.

No artigo 4º parece haver uma contradição: dizem que não se pode exigir a uma pessoa nenhum "exame psicológico que limite a sua autodeterminação de género", mas uma pessoa não se pode mostrar "interdita ou inabilitada por anomalia psíquica" para poder mudar de nome. Eu entendo o que é que estão a tentar dizer com isto (não deve ser exigido nenhum diagnóstico para mudar o nome), mas parece-me que se cria aqui um pequeno loop suscetível a más interpretações (ou más vontades) pelos funcionários das conservatórias. Porque é preciso garantir que a pessoa não esteja inabilitada por alguma anomalia psíquica, será então legítimo pedir à pessoa algum tipo de relatório clínico que comprove precisamente isso. No entanto, poderá isso ser considerado como um "exame psicológico que limite a sua autodeterminação de género" ou não?
(13.10.2016 edit: uma pessoa que percebe bem mais do que eu no que toca a estes assuntos disse: "a interdição e inabilitaçao sao decretadas por um tribunal, pelo que não será necessário mostrar qualquer diagnóstico momento do registo. Entendo a preocupação, mas a inabilitação e interdição são figuras gerais para remover ou limitar a capacidade juridica das pessoas, nomeadamente em consequencia de patologia mental que limite a sua capacidade de se auto-reger.")

Ainda no mesmo artigo, extendem a lei a menores de 18 anos, o que é uma melhoria enorme em relação à lei atual. Menores de 16 (artigo 5º) terão de ter autorização de um guardião legal ou, caso este não colabore, poderão intentar uma ação judicial.

No artigo 9º estabelecem que qualquer instituição, pública ou privada, tem obrigação de emitir documentos ou diplomas com o nome e sexo corrigidos sem custos adicionais para a pessoa. Os casos em qua alguma instituição se recusa a atualizar os documentos não são muito comuns, mas mesmo assim existem, portanto a inclusão deste artigo é bastante positiva.

Os artigos 11º  e 13º e 14º estão cheios de boas intenções, mas temo que tentem resolver problemas que estão muito além do alcance de qualquer lei. A forma como as pessoas nos tratam não vão mudar com nenhuma lei, mas sim com anos e anos de educação. Fica notada a tentativa, no entanto. Ainda no artigo 13º, não pude deixar de reparar, na alínea b), o destaque dado às mulheres trans como alvos de discriminações múltiplas. A invisibilização da discriminação sofrida por homens trans (e, no contexto desta alínea em particular, de homens trans que são alvo de outros tipos de discriminações tais como racismo ou homofobia) é algo que me mete uma comichão tremenda no discurso ativista atual. Entendo a ideia de se dar atenção à mulheres, uma vez que são elas que sofrem a maioria da violência transfóbica letal, mas tenho receio que a inclusão desta alínea desta forma acabe por ter como consequência o que vejo na maioria dos espaços ativistas, que é hierarquização de opressões e a resultante negligência da discriminação e violência dirigida aos homens trans. 

Em relação ao artigo 12º (referente ao acesso aos cuidados de saúde), já comentei acima. É muito bonito dizer que se irão garantir esses cuidados, mas hoje em dia já nos dizem isso mesmo sem que, no entanto, esses cuidados estejam efetivamente garantidos. Um ponto positivo que se pode retirar daqui é a oficialização da garantia ao acesso aos cuidados de saúde, de forma a que tal não nos possa ser negado no futuro por qualquer razão. 

Por fim, há que louvar o artigo 15º, que contempla a discriminação laboral em função da identidade de género da pessoa. 

Na generalidade, tenho uma opinião favorável em relação a esta proposta de lei. As falhas que apontei não são críticas, apesar de poderem ainda ser melhor limadas. Fico a aguardar desenvolvimentos (que, aparentemente, só em 2017 é que vão começar a surgir).